sexta-feira, 16 de março de 2012

declaração de amor

Não! Não vou me declarar à Clarice agora. Escrever palavras sobre ela é uma coisa, mas escrever para ela é outra, completamente diferente. Na verdade, não sei o que escreveria para Clarice, a gente nunca sabe o que dizer quando ama muito. Algum dia eu tentarei dizer algo a ela, mas por enquanto eu  só tenho o que ela diz para mim.
E hoje ela me disse que ama a língua portuguesa. Não tiro sua razão, eu também amo - por isso escolhi Letras, e sou tão feliz... - porque ela é linda, complexa e instigante. Procuramos respostas para compreendê-la em sua profundidade, mas existem muitas lacunas. É impossível conhecer a língua portuguesa em sua completude, sintática ou semântica, que seja, mas nos arriscamos a tentar.
Tentando conhecer a fundo a alma, o empirismo de Clarice me remete a uma declaração de amor à vida, à escrita e ao leitor, se levado em conta que, tal qual a nossa língua portuguesa, somos as incógnitas que movem a magia clariciana.

" Esta é uma declaração de amor: Amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida."




Clarice Lispector
crônicas para jovens - de escrita e vida.

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