Texto-homenagem com trechos retirados de Água Viva (1973), (A Hora da Estrela (1977), Laços de Família (ROCCO, 2009).
Se um dia Deus vier à Terra
haverá silêncio grande. O homem ficará, talvez, inebriado pelo encanto e
terror, rendido à culpa por entregar-se à sedução de ser humano, às qualidades
de gente em estado bruto, tão distante do imaterial que é Deus.
Se um dia
Deus vier à Terra haverá silêncio grande. Há um hiato terrível entre o que
diz o Criador e o que entende a criatura; o hiato é o silêncio-tempo, o
processo necessário para dar sentido à mensagem do alto. Refletir. Meditar.
Processar. Mas
o silencio é tal que nem o pensamento pensa. Palavras em
excesso pensadas no
instante-já, lançadas ao ar sem o cuidado do hiato,
sem pensar que o outro sou eu. Para escrever eu antes celebro Clarice, folheio meus livros, bebo suas angústias e questiono-me:
que fazer quando sinto
totalmente o que as outras pessoas são e sentem?
Vivo-as mas não tenho
mais força. Porque é escasso o amor. Esse amor universal de Clarice. De
Deus.
Se um dia Deus vier à Terra haverá silêncio grande. Ludibriam com
a fé, rechaçam a caridade, brincam com sonhos. Desencantam. Se aqui estivesse,
Clarice continuaria a escrever, agora em máquinas mais modernas, talvez, sobre
o movimento das rosas brancas, as gotículas da chuva, a fome dos peixes, a
música que existe por detrás do pensamento, a fome de liberdade, as palavras
nas entrelinhas, as palavras que não dão conta do dizer, o excesso de si que
chega a doer. O excesso de nós. Escrevia porque era desesperada e estava
cansada, e não suportava mais a rotina de ser ela mesma. Como eu em tempos de
quarentena. Como tantos que agora precisam encarar o hiato que é o silêncio de
Deus sobre o silencio dos corpos que se foram. Não suportaria, talvez, a
desesperança que se abateu e tentaria, ao menos na escrita, animar-se, porque
sua
única salvação é a alegria.
Porque é cruel demais saber que a vida é
única e que não temos como garantia senão a fé em (tempos de)
trevas. Mas,
ao deitar, tomaria um analgésico para amenizar sua dor de miséria humana e
refaria sua força na solidão. Clarice, que
nunca teve medo nem de chuvas
tempestivas nem de grandes ventanias soltas pois era também o escuro da
noite, hoje não nos deixa sós, pois se faz presente como
um coração
batendo no mundo. E quem por aqui termina, transcreve suas linhas para não
esquecer:
O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser.
Sou-te.