sábado, 10 de março de 2012

Clarice por Lygia.

Estou lendo o maravilhoso livro organizado por Teresa Monteiro, Clarice Lispector na cabeceira - crônicas e me emocionei com a apresentação da fantástica e linda escritora Lygia Fagundes Telles, de um capítulo cujo nome é "As três experiências", minha crônica favorita da Clarice. Sua sensibilidade ao descrever a visita que recebeu, no seu quarto de hotel, de um pássaro, na madrugada da morte de Lispector, prende a alma. Tão maravilhosa quanto essa experiência da Lygia, é também sua narrativa remetente aos dias que ela passa com Clarice. Sou feliz por ser eu e apenas por uma vez desejei ser outra pessoa, - algo que, quanto me sentir mais a vontade, contarei a vocês. Falando nisso, eu tenho leitores?? Quem sabe... - mas hoje me ocorreu uma imensa vontade de estar no lugar da Lygia e fazer aquela viagem ao lado da Lispector. Invejinha leve? Talvez. Mas já fiquei muito honrada de ter o privilégio de ler esses momentos que transcreverei agora.

" [...] Véspera dessa viagem para Marília. E a voz tão comovida de Léo Gilson Ribeiro, a Clarice Lispector está mal, muito mal. Desliguei o telefone e fiquei lembrando da viagem que fizemos juntas para a Colômbia, um congresso de escritores, tudo meio confuso, em que ano foi isso? Ah, não interessa a data, estávamos tão contentes, isso é o que importa, contentes e livres na universidade da cálida Cali. Combinamos ir no mesmo avião que decolou sereno mas na metade da viagem começou a subir e descer, meio desgovernado. Comecei a tremer, na realidade odeio avião, mas por que será que estou sempre metida em algum deles? Para disfarçar, abri um jornal, afetando indiferença, oh! a literatura, o teatro. Clarice estava na cadeira ao lado, aquela cadeira que comparo à cadeira de dentista, cômoda, higiênica e detestável. Então ela apertou o meu braço e riu.  Fique tranquila porque a minha cartomante já avisou, não vou morrer em nenhum desastre. E o tranquila e o desastre com aqueles rrr na mais na pronúncia que eu achava bastante charmosa, desastrrre!
     Desatei a rir do argumento. A carrrtomante, Clarice?... E nesse justo instante as nuvens se abriram
e o avião pairou sereníssimo acima de todas as coisas, Eh! Colômbia.
     La Nueva Narrativa Latinoamericana. No hotel, os congressistas já tinham começado suas discussões na grande sala. Mas essa gente fala demais!, queixou-se a Clarice na tarde do dia seguinte, quando então combinamos fugir para fazer algumas compras. na rua das lojas fomos perseguidas por moleques que com ar secreto nos ofereciam aquelas coisas que os brasileiros apreciam... Corri com um deles que insistiu demais. Já somos loucas pela própria natureza, eu disse. Não precisamos disso! Clarice riu e com o vozeirão nasalado perguntou onde ficavam as lojas de joias, queríamos ver as esmeraldas, esmerraldas! 
     Quando chegamos ao hotel, lá estavam todos ainda reunidos naqueles encontros que não acabavam mais. Mas esses escrrritores deviam estar em suas casas escrrrevendo!, resmungou a Clarice enquanto disfarçadamente nos encaminhamos para o bar um pouco adiante da sala das ponencias; a nossa participação estava marcada para o dia seguinte, quando eu devia começar dizendo que literatura no tiene sexo, como los ángeles. Alguma novidade nisso? Nenhuma novidade. Então a solução mesmo era comemorar com champanhe (ela pediu champanhe) e vinho tinto (pedi vinho) a ausência de novidades. Já tinham nos avisado que o salmão colombiano era ótimo, pedimos então salmão com pão preto, ah, era bom o encontro das escritoras e amigas e moravam longe, ela no Rio e eu em São Paulo. Tanto apetite e tanto assunto em comum, os amigos. A dificuldade de ofício que era melhor esquecer no momento, a conversa devia ser amena. os problemas, dezenas de problemas! estavam sendo discutidos na sala logo ali em diante. No refúgio do bar, apenas duas guapas brasileñas com pesetas na carteira e muito assunto. Clarice queria minha opinião, afinal, quem era mais indiscreto depois da traição, o homem ou a mulher?
     Lembrei que nos antigamentes (assim falava tia Laura) a mulher era um verdadeiro sepulcro, ninguém ficava sabendo de nada. Século XIX, início do século XX, Silencio en la noche, diz o tanto argentino. Ainda o silêncio porque, segundo Machado de Assis, o encanto da trama era o mistério. Na minha primeira leitura (é claro, Dom Casmurro) confessei ter achado Capitu uma inocente e o marido, esse sim, um chato neurótico. Mas na segunda leitura mudou tudo, a dissimulada, a manipuladora era ela. Ele era a vítima. Clarice pediu cigarros, eram bons os cigarros colombianos? Franziu a boca e confessou que sempre duvidou da moça. Mulher é o diabo!, exclamou e desatei a rir, a coincidência: era exatamente essa a frase daquele engolidor de espadas do meu conto "O moço do saxofone". Acho que agora elas já estão exagerando, não? Os homens verdes de medo e elas as primeiras a alardear, Pulei a cerca!... Mulher é o diabo!
     Quando saímos, os congressistas já deixavam a sala de reuniões. "Olha só como eles estão fatigados e tristes!", ela cochichou. E pediu que eu ficasse séria, tínhamos que fazer de conta que também estávamos lá no fundo da sala. Ofereceu-me de pressa uma pastilha de hortelã e enfiou outra na boca, o hálito. Entregamos os nossos pacotes de compras a uma camareira que passava e Clarice recomendou muito que a moça não trocasse os pacotes das corbatas, na caixa vermelha estavam as corbatas que ela comprara, a camareira entendeu bem?
    As recomendações de Clarice. No último bilhete que me escreveu, naquela letra desgarrada, pediu: Desanuvie essa testa e compre um vestido branco!

     Um momento, agora eu estava em Marília e tinha que me apressar, o depoimento seria dentro de uma hora. Ah!, essas demoradas lembranças.
     Quando entrei no saguão da faculdade, uma jovem veio  ao meu encontro. O olhar  estava assustado e a voz me pareceu trêmula. A senhora ouviu? Saiu agora mesmo no noticiário do rádio, a Clarice Lispector morreu essa noite!
     Fiquei um momento muda. Abracei a mocinha. Eu á sabia, disse antes de entrar na sala. Eu já sabia."



Essa experiência única da Lygia é muito íntima. Arrepiante. Emocionante.
Se há algum leitor interessado sobre a primeira parte dessa apresentação, sobre o pássaro que ela descreve com tamanha delicadeza, deixe um comentário e a postarei.

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