quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Centenário de Clarice Lispector

 

Texto-homenagem com trechos retirados de Água Viva (1973), (A Hora da Estrela (1977),  Laços de Família (ROCCO, 2009).


Se um dia Deus vier à Terra haverá silêncio grande. O homem ficará, talvez, inebriado pelo encanto e terror, rendido à culpa por entregar-se à sedução de ser humano, às qualidades de gente em estado bruto, tão distante do imaterial que é Deus. Se um dia Deus vier à Terra haverá silêncio grande. Há um hiato terrível entre o que diz o Criador e o que entende a criatura; o hiato é o silêncio-tempo, o processo necessário para dar sentido à mensagem do alto. Refletir. Meditar. Processar. Mas o silencio é tal que nem o pensamento pensa. Palavras em excesso pensadas no instante-já, lançadas ao ar sem o cuidado do hiato, sem pensar que o outro sou eu. Para escrever eu antes celebro Clarice, folheio meus livros, bebo suas angústias e questiono-me: que fazer quando sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Porque é escasso o amor. Esse amor universal de Clarice. De Deus. Se um dia Deus vier à Terra haverá silêncio grande. Ludibriam com a fé, rechaçam a caridade, brincam com sonhos. Desencantam. Se aqui estivesse, Clarice continuaria a escrever, agora em máquinas mais modernas, talvez, sobre o movimento das rosas brancas, as gotículas da chuva, a fome dos peixes, a música que existe por detrás do pensamento, a fome de liberdade, as palavras nas entrelinhas, as palavras que não dão conta do dizer, o excesso de si que chega a doer. O excesso de nós. Escrevia porque era desesperada e estava cansada, e não suportava mais a rotina de ser ela mesma. Como eu em tempos de quarentena. Como tantos que agora precisam encarar o hiato que é o silêncio de Deus sobre o silencio dos corpos que se foram. Não suportaria, talvez, a desesperança que se abateu e tentaria, ao menos na escrita, animar-se, porque sua única salvação é a alegria. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em (tempos de) trevas. Mas, ao deitar, tomaria um analgésico para amenizar sua dor de miséria humana e refaria sua força na solidão. Clarice, que nunca teve medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas pois era também o escuro da noite, hoje não nos deixa sós, pois se faz presente como um coração batendo no mundo. E quem por aqui termina, transcreve suas linhas para não esquecer: O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser. Sou-te.