domingo, 24 de agosto de 2014

Considerações com café.

               Estou eu aqui, tomando um tradicional cafezinho da tarde, revendo leituras, estudando, ouvindo um fundo televisivo daqueles programas cafonas de domingo, quando me lembro de meu tão abandonado blog. Resolvi, então, dispor aos leitores uma crônica de minha autoria que, apesar de não ter sido inspirada na crônica de Clarice Lispector "dificuldade de expressão", pode com esta realizar um interessante diálogo (isto, claro, para quem gosta de fazer pontes invisíveis e passear por elas).

O homem sem cor 
Flávia Pais.

             Observo a vida através da janela em uma segunda-feira nublada enquanto assopro meu café, o fazendo embaçar as lentes dos óculos que mediam meu olhar. Nesse pequeno gesto que sugere uma brincadeira de criança, ora perco meu foco de visão e ora volto a enxergar sem o embaraço do vapor. Vislumbro dentro dessas pausas a figura emblemática de um homem que, por se esconder atrás da barba e roupa pesada e escura, não me permite identificar ao certo sua face. Penso que se passasse pela calçada como quem segue seu caminho pré-destinado, eu nunca saberia ao certo nada sobre sua expressão tão pouco distinguiria os traços que o delineiam. 
            Para minha surpresa, o homem, então, pára no meio da calçada e aguça minha curiosidade para além de conseguir interpretar sua fisionomia. Completamente virado de frente para minha janela e sem saber que está sendo percebido, lança para o vago a vastidão de um olhar, que percorre rua a fora e sobe às árvores até alcançar o céu. Com sua cabeça erguida posso perceber: o homem não tem cor: é em perfeito tom negro que se alinha às suas roupas, e a única claridade que consigo perceber naquele ser está em seus olhos brancos e rotundos, desesperados à procura de uma bênção suspensa em algum lugar. Ele, então, cansado de procurar aquilo que eu não sei o que é, senta-se recostado no muro frio de concreto batido, eleva suas mãos ao rosto e chora copiosamente por minutos. Observo-o agora com comoção e surpresa. -- A vida não pára porque ele parou.
             Neste instante, há ônibus, carros, crianças, e todo mister melódico dos grandes centros urbanos transpassando os minutos, tudo existindo sem perceber aquela dor. Passam por ele, na mesma calçada, como se ali fosse uma passarela do auterego, senhores e jovens com seus suficientes problemas, incapazes de, sequer, notarem a presença pluviosa do homem sem cor.
            Tempos depois, reconstitui-se. E num ímpeto de quem quer recuperar os minutos perdidos, levanta-se com a mesma expressão enigmática escondida atrás de um único vulto de cor fechada, e prossegue seu caminho para onde sabe-se lá Deus. Continua a andar sem ser olhado e sem sua cor, apenas mais um não-sujeito. Será um em um milhão que hoje, através de um curioso olhar, ganhou existência significativa? É melhor eu fechar minha janela. O café esfriou.


dificuldade de expressão
Clarice Lispector

             A dificuldade de encontrar, para poder exprimir, aquilo que no entanto está alí, da a impressão de cegueira. É quando, então, se pede um café. Não é que o café ajude a encontrar a palavra mas representa um ato histérico-libertador, isto é, um ato gratuito que liberta.

crônicas para jovens
de escrita e vida

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